“Alice” é um dos casos clássicos apontado por Ítalo Calvino de livro que todos conhecem sem necessariamente ter lido. Contribui muito para isso a versão em desenho animado realizada por Walt Disney que fixou no imaginário de diversas gerações as figuras de Alice, do Coelho Branco, do Chapeleiro Maluco, do Gato de Cheshire, de Humpty-Dumpty e tantos outros personagens.
O fato é que uma releitura revela que o livro está longe de ser apenas uma obra infantil. Embora a referência aqui seja a da edição portuguesa, o exemplar que reli foi o publicado pela editora Summus em 1980 e, infelizmente, esgotado. Digo infelizmente porque nessa edição o leitor é brindado com uma excepcional introdução do tradutor e organizador do volume, Sebastião Uchoa Leite. Nessa introdução, Leite dá uma aula de como interpretar um clássico sem se prender a uma escola ou vertente analítica, passando em revista os diversos críticos e comentaristas de “Alice” e analisando os diversos níveis presentes na obra: lógicos, lingüísticos, psicológicos, históricos, políticos, filosóficos.
“Alice” surge assim como um clássico precoce do nonsense, repleto de jogos de linguagem e paradoxos semânticos. O que ressalta da leitura de Leite são as diversas referências à lógica e à filosofia da linguagem presentes na forma de brincadeiras e ironias no interior da obra. Lewis Carrol (pseudônimo de Charles Dodgson) era um aficcionado da lógica e da matemática, além de um dos precursores da fotografia, sendo considerado pelos especialistas um dos maiores fotógrafos ingleses do século XIX. Como anexo ao livro estão algumas das fotos tiradas por Carrol de suas amigas, meninas entre oito e doze anos, muitas de caráter evidentemente erótico ... abrindo assim outra chave de interpretação de sua obra, reveladora das pulsões sexuais reprimidas (ou nem tanto assim) do período vitoriano na Inglaterra.
Para quem estiver disposto a fugir das primeiras impressões e enveredar por uma leitura que só na superfície é infantil, “Alice” promete um bom exercício intelectual.