'Você tem alguma recordação da sua vida aos três anos e meio de idade? E aos quatro anos e meio? Não? E se você de repente descobrisse que a sua vida foi uma até essa idade, com pais, cidade, país e língua bem definidos e que a identidade que você adquiriu depois, em uma convivência com outros pais, em outra cidade, outro país e falando outra língua, por toda o resto da sua infância e adolescência, não tem nada a ver com aquela dos seus primeiros quatro anos e meio de vida? Talvez, por mecanismos internos da mente, você resolvesse soterrar as memórias daquela sua vida pregressa e viver sua nova vida, estudar, se formar, conseguir um emprego, etc. Mas será que você conseguiria realmente se livrar do seu passado? Não ficaria você, também por mecanismos internos da mente, constantemente atormentado por impressões, pesadelos e pela sensação angustiante de não saber quem é? E se as suas memórias mais profundas do seu passado viessem a tona algum dia, talvez décadas depois, já no fim da vida, despertadas por algum incidente casual, mas com tanta força e persuasão que você não pudesse evitar fazer de tudo para redescobrir seu passado e o de seus pais? Pois esta é a história de Jacques Austerlitz, o personagem principal deste livro do escritor alemão radicado na Inglaterra W. G. Sebald. O livro, escrito em primeira pessoa pelo próprio Sebald, narra as histórias contadas a ele por Austerlitz em vários encontros entre os dois ao longo de 30 anos, em Antuérpia, Londres e Paris. Austerlitz, um professor de história da arquitetura em Londres, começa discorrendo sobre a grandiosa, mas inútil, pretensão dos projetos arquitetônicos das fortalezas militares européias em criar estruturas inexpugnáveis, mas, após alguns encontros, ele passa a falar sobre a história da sua vida. O mais incrível, entretanto, é a maneira como Austerlitz conta sua história: com narrativa fluida e profundamente interiorizada, rica em detalhes históricos contados sem pedantismo e ilustrada por fotos em preto-e-branco meio oblíquas ou desfocadas, tiradas por ele mesmo com sua velha máquina fotográfica e reproduzidas no livro. Ao fim desse livro pouco comum, escrito pelo também incomum e enigmático Sebald (infelizmente falecido há alguns anos), fica-se sem saber se de fato o personagem Austerlitz existiu ou não. A meu ver, porém, isto é o menos importante. O livro é uma jóia por desnudar toda a experiência interna de um indivíduo e por ilustrar, de forma dramática, a relação que a história e a arquitetura dos edifícios e das cidades têm com as vidas das pessoas.
...Continua